Outro dia confidenciei a uma amiga estar chateada porque um carinha com quem saí desapareceu logo depois, sem deixar rastro. Imediatamente após saber que eu fui para a cama com ele no primeiro encontro, ela foi taxativa:
“Ah, tá explicado. Ele sumiu porque você não se valorizou o suficiente, foi logo entregando o ouro”.
Essa acusação me remeteu imediatamente a uma outra fala, ainda mais crassa, que tive o desgosto de ouvir há alguns meses.
Uma colega de trabalho tem uma filha de 18 anos que recentemente arrumou um namorado com quem está cogitando fazer sexo. A mãe me relatou ter pedido à filha que pense muito bem antes de “se entregar” ao rapaz, pois, segundo ela, a moça ainda virgem possui um bem muito precioso que lhe permitirá escolher o melhor dos homens: o hímen.
Tratam-se de duas versões – uma hard e outra soft, uma contemporânea e outra antiga – do mesmo discurso machista. Sim, o machismo tem expressões agudas, como a violência contra a mulher, o estupro, a criminalização do aborto, a mutilação genital feminina, o feminicídio, mas também está entranhado nas nossas relações cotidianas. E cria um abismo emocional entre homens e mulheres que leva a muitos desentendimentos, frustrações e brochadas épicas.
Permitam-me agora algumas generalizações. Obviamente não são todas as pessoas que pensam e agem assim, mas esse breve exercício deve servir para elucidar o que está por trás da fala da minha amiga e minha colega.
Uma enorme proporção de mulheres e homens sobrevalorizam o sexo e tratam a vagina como um troféu. À mulher, cabe regular o acesso masculino à buceta, estabelecendo condições, elaborando testes, submetendo os homens a rituais malucos retirados de comédias românticas. Ao homem, cabe o papel de vencer a resistência feminina sem, contudo, se deixar aprisionar pelas suas exigências de compromisso e estabilidade. Ele deve seguir diligentemente todos os protocolos até chegar ao santo graal machista: a xoxota inacessível. E, depois de saborear a vitória, deve partir para outros desafios.
É evidente que quanto mais se prorroga o enlevo sexual aumentam as chances de que o ato seja mais intenso. A espera frequentemente funciona como um jogo erótico que eleva a potência do encontro dos corpos.
Mas daí a concluir que o sexo é uma moeda de troca, um trunfo feminino, um elemento de barganha pela afeição do homem é absurdo. Ou a partir disso inferir que o meu peguete poderia ter sido fisgado caso eu tivesse colocado mais obstáculos à sua corrida pela minha racha é uma estupidez.
Até a invenção da pílula anticoncepcional, o sexo esteve associado a um ciclo de gravidez, dor e morte potencial para a mulher e seus filhos. Por isso, é difícil dimensionar o tamanho da revolução representada pelo controle eficaz de natalidade. A pílula dissociou sexo de procriação e, ao fazê-lo, pavimentou o caminho para a igualdade sexual entre homens e mulheres.
Ora, até então quem carregava o fardo das consequências potenciais do sexo era a mulher. Era, portanto, mais do que natural que ela regulasse o acesso masculino ao seu corpo. Sexo deveria implicar compromisso, responsabilidade mútua. Caso contrário, a mulher teria que arcar sozinha com os resultados potenciais.
É evidente que essa é uma explicação parcial e demasiadamente generosa para com os homens. Poderíamos mencionar que a exclusividade sexual foi uma imposição sobre a mulher ligada historicamente à instituição da propriedade privada e ao desejo do homem de transmitir seus bens a herdeiros “legítimos”, o que acabou por separar socialmente as mulheres “de família” das “perdidas”.
Poderíamos explorar as características econômicas da instituição do casamento ligadas ao patriarcado ou ainda dissecar as formas de economia afetiva e sexual instauradas pelo mito do amor romântico no ocidente. Para tais propósitos, recomendo a leitura instigante de livros como “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, de Friedrich Engels, “Casamento indissolúvel ou relação sexual duradoura”, de Wilhem Reich e ainda “O amor e o Ocidente”, de Denis de Rougemont.
Mas para os propósitos desse texto, acredito que essa explicação basta: tudo aquilo que esteve em jogo no sexo até o advento da pílula contribuiu para que a buceta fosse encarada como uma moeda a ser trocada por compromisso. E também podemos identificar aí a gênese social do garanhão.
O garanhão, o predador sexual, o Casanova é um subproduto desse jogo perverso que vem sendo praticado por homens e mulheres há séculos. Obter prazer sexual sem que isso se convertesse em um encargo ou obrigação parecia ser algo extremamente transgressor e, por isso mesmo, emocionante para muitos homens.
Perverter, desencaminhar, despojar a mulher da sua virtude e, mais do que isso, vencer sua resistência aos avanços sexuais masculinos foi, durante muito tempo, visto como uma atividade de estrategista, de artista, cujo prêmio era a amplificação da potência da experiência sexual em si e a construção de uma reputação de macho-alfa.
Mas o que fazer quando essa atividade se torna obsoleta? Como proceder quando a conquista perde o seu sentido diante de uma disponibilidade sexual crescente das mulheres? O que acontece com o Casanova quando as mulheres estão tão ávidas por fazer sexo quanto ele?
A minha humilde sugestão é que homens e mulheres comecem a deslocar a sua energia desses enfadonhos rituais de conquista para as relações sexuais – e também afetivas – em si. As mulheres devem parar de tratar a xana como seu bem mais valioso e fazer sexo quando estiverem a fim. Se o sexo for bom e se converter em algo mais, ótimo. Mas fazer sexo de qualidade, que não resulte em compromisso não deve ser encarado como um fracasso, perda de tempo ou uma entrega indevida.
Afinal, não é porque você foi a Paris no ano passado e não tem grana para ir de novo que a experiência foi uma desgraça. Ou foi?
Nota da autora: Enquanto finalizava esse texto, o tal carinha reapareceu e estamos saindo juntos. Não considero que o julguei mal porque em nenhum momento fiz qualquer suposição sobre os motivos que teriam levado ao seu afastamento temporário. Procurei refutar as teses malucas de que caso eu tivesse feito jogo duro as coisas seriam diferentes. Quando responsabilizada pelo sumiço do rapaz por causa da minha licenciosidade, respondi que não me arrependia de termos transado. Foi bom e eu faria tudo de novo. E foi justamente por não poder fazer isso que estava chateada. Leia-se: chateada, não derrotada ou humilhada. O fato de estarmos juntos só confirma a tese de que é possível e necessário refundar as nossas relações em bases mais igualitárias.